11/6/05

Comédia da vida privada II

Os meu progenitores são das criaturas mais fascinantes que haverá à face da terra. Coincidência do caraças terem casado logo um com o outro. Pfffff! Sejamos realistas...qual era a probabilidade?! E o prenúncio de que as suas vidas em conjunto seria uma comédia alternativa começou logo cedo, no entanto distraídos aos sinais da vida como é seu apanágio também este lhes passou ao lado ingenuamente: resolvendo quebrar as fronteiras das actividades típicas de fêmas e machos, abrindo portas à tolerência e descomplexualização entre os sexos, fizeram um acordo. A minha mãe levaria o meu pai a ver dança clássica e ela iria com ele a um jogo do Benfica. Pois. Os roncos de tenor do meu pai importunaram por demais os bailarinos e ficou claro que não fazia sentido levar a minha mãe aos jogos quando ela esforçando-se, muito interessada, perguntou: "Nininho (termo carinhoso apropriado a partir do romace entre Fernando Pessoa e sua Ophelia) ... quem é aquele senhor de calções pretos que corre tanto?". Há portanto áreas em que não vale a pena forçar a barra. Eles tentaram, e isso per se é muito bonito.
Passados quase 30 anos desta linda união eu dou graças a Deus por ser o meu pai quem resolveu investir na arte da culinária, assumindo que a haver um mais prendado que o outro a alternativa seria, bom...a minha mãe. Ela não sabe mas exceptuando umas certas favas, sopas, alguns bolos e assados é uma verdadeira nódoa na cozinha. Dias de canja cá em casa, por exemplo, são dias de luto. Quando estou doente ela estranha eu insistir tanto em comer chá e torradas. "Ah deixa lá mãe, nem tenho fome sequer". Na verdade, do mal o menos e suspiro até de alívio quando penso que a minha existência só foi programada na fase pós-latas de atum e sardinha em conserva. (ufa!) As coisas que lhe dão prazer real estão por norma localizadas entre um índice e uma bibliografia. Até um mero molhinho de fotocópias com pouco contraste lhe dá um outro brilho especial no olhar, aquele que surge nas mães e avós tradicionais quando enfiadas em aventais e em compota até às bochechas. É aí que entra o meu pai. Lá iremos mais à frente. A minha mãe é uma mulher das letras, apaixonada pela literatura, pelas ciências sociais e por Marte, a sua colónia balnear predilecta. Aliás se o problema da Nasa é o acesso já podiam ter ligado para Lisboa há muito tempo. Para ela os trabalhos domésticos são a actividade mais desinteressante que existe. E eu compreendo, para quê perder uma tarde a engomar cuecas quando se pode aproveitar essas 8 ou 9 horinhas a ler uma gramática inglesa e a fazer exercícios de treino ou de listening???!!!! É que assim que ela vê a página aberta no 1.1. já ninguém a agarra!
O meu pai por seu turno tornou-se uma fadinha-do-lar há medida que o tempo passou. E não obstante o avental ao qual tem vindo a ganhar um crescente afecto nota-se perfeitamente a sua veia de macho português apreciador de futebol quando me tira o prato da frente estando eu ainda a comer e me diz em tom de árbitro: " Acabou o tempo!...tenho de arrumar a cozinha." Já não é a primeira vez que vou atrás dele com um garfo. Já não é a primeira também que pondero a hipótese de no seu aniversário dar-lhe apenas um apito....e um postal.
Hoje por exemplo, está um dia lindo de outono. Céu aberto, sol e muito frio. Adoro estes dias. A minha mãe está a trabalhar no escritório. Grava pela enésima vez as músicas infantis inglesas que ensina aos seus alunos pequenitos. O meu pai está na cozinha. Estimativas em curso para hoje: um pudim flan, uma bavaroise de morango, gelatina de ananás e não vá o diabo tecê-las...um arrozinho de polvo.
"- Joana, podes parar de soprar tanto para cima do pudim. Isso não vai estar pronto para o jantar!"

11 comments:

Alberto Oliveira said...

As tuas "crónicas familiares" são simplesmente deliciosas e então o tema de hoje é dos meus favoritos. Tudo o que trate de alimentar o estômago... é sempre a andar de mota!

Bjinhos!

Anonymous said...

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mfc said...

Pois na minha casa também conheço a versão do cozinheiro; dividem-se as tarefas, mais ou menos bem. Bem, mais para o menos do que para o mais.

Mas passados 28 anos, duas filhas gémeas e um criador compulsivo de bolgues, continuam a dar-se bastante bem. Exceptuando quando têm que decidir se, na máquina da loiça, as facas são com a serra virada para cima ou para baixo. Ou então, porque é que os copos têm que ser organizados doas mais baixos para os mais altos (e não, não somos compulsivos bebedores de vinho)?

Mas porque é que tinha que ser filho de um professor de matemática?

Anonymous said...

É que tu não fazes ideia da gargalhada que foi neste gabinete agora!!!!! Antes de ir almoçar estar a ler isto deu-me primeiro uma fome desgraçada e segundo uma boa disposição para aturar a fila do refeitório!
Excelente mesmo!
Este post e o anterior estão por demais!
Passa pelo meu canto quande te der na bolha

Beijokinhas grandes

W. said...

Isto explica muita coisa! Já sabemos de que lado da família vem o jeito para a escrita: falta só saber de onde vem o sentido de humor! Está um texto soberbo, é facílimo visualizar-te a correr atrás do teu pai com o garfo... e nem sequer vos conheço! :)

manhã said...

Adjectivo a empregar: Simplesmente delicioso, no sentido gastronómico e sociológico!!

Indibiduo said...

pois é, pois é, agora falta saber que genes herdas-te... os do apito, ou das músicas infantis???

Beijito esquimó!

Pyny said...

Tantas sobremesas para o jantar? Ai ai:P

Diego Armés said...

Se eu levasse a minha mãe ao estádio da Luz, ela perguntaria "o que é aquilo esverdeado lá em baixo?"...


Vaca da miopia...

I Am No One said...

Uma vida privada cheia de sorrisos, está-se mesmo a ver :)*

Bernardo Eça said...

vives numa sitcom