3/9/07

O Labirinto do Fauno



... É um conto de fadas para adultos. Uma viagem fascinante que segue a estrutura clássica dos contos tradicionais. A este propósito aconselha-se a leitura da 'Psicanálise dos contos de fadas' de Bruno Bettelheim porque palavra de honra que o filme se torna ainda mais saboroso de apreciar, e mais perceptível nos seus conteúdos latentes.

A pequena Ofélia (a heroína) apresenta-se com fortes remniscências da Alice de Lewis Caroll, mas rapidamente a semelhança de roupagens se perde, curiosamente 'na mesma árvore' onde Alice adormece de livro na mão. Também é ali que Ofélia avança para o primeiro dos seus desafios, mas a viagem que lhe é proposta está bem mais de acordo com a morfologia dos contos tradicionais conforme o folclore popular, do que com as dinâmicas esquizofrénicas do autor de Alice nos país das maravilhas. E rapidamente nos esquecemos de Caroll.

Na sua essência, Labirinto do Fauno é um conto de terror, como são no fundo todos os contos de fadas originais, em que o protagonista-criança é posto à prova. Guillermo del Toro consegue com este filme estabelecer um paralelo de universos entre as lutas infantis pelo crescimento, e aquelas outras dos adultos, de autonomia e liberdade (sendo que o contexto é o do pós-guerra civil espanhola). Parte do brilhantismo do filme reside aí... a luta de Ofélia por conquistar o seu lugar de princesa (metáfora para o fluorescimento psicológico da jovem mulher) desenrola-se a par das guerras reais dos adultos por conquistar a liberdade de existir enquanto indivíduos. E se a primeira se desenrola ao nível do imaginário (como aliás é suposto na infância) a segunda cresce num plano bem real, com todos os horrores característicos das guerras dos homens, e consequente castração da individualidade -materializada em torturas medievais e homicídios levianos por parte do 'gajo bera' da história.

A beleza da coisa cresce quando a estética do real e a do imaginário se tocam e se fundem. A luta torna-se uma só, aproximando a infância e a adultícia a um vector único em continuum, naquele encontro abraçado entre Ofélia e Mercedes em que a pequenina pede "Leva-me contigo". Do ponto de vista psicológico, estas personagens surgem quase como um desdobramento da unidade psíquica criança-mulher, cada uma lutando em seu plano, até que estejam preparadas para se encontrar e unir esforços. Dizia que parte do brilhantismo do filme reside aí... em mostrar que crianças e adultos são feitos do mesmo tecido sonhador e receoso, e que evoluir (independentemente da idade) é um jogo sensível de articulação entre os dois.

No que diz respeito à genialidade do conto tradicional enquanto objecto artístico que, à semelhança do mito, encena os grandes dilemas existenciais, os seus elementos chave estão todos neste filme: Os objectos mágicos que garantem ao herói a coragem para acreditar que pode superar os obstáculos; os seres mágicos (fadas e fauno) que asseguram e pontuam o desenrolar das peripécias; a mágica do número três associada às tarefas sobrehumanas que o herói tem que superar (sinónimo de paciência e endurance perante as dores de crescimento); as figuras adultas autoritárias que garantem a frustração necessária para o despontar da rebeldia; a necessidade de seguir o instinto infantil corajoso (fascínio pelo desconhecido) para explorar criativamente soluções vitoriosas; a cedência momentânea às pulsões infantis (voracidade oral) como sinal de resistência à 'saída do ninho'; a cadência e o suspense; o sangue e o sangramento feminino enquanto símbolo de vida; a morte simbólica da mãe encenando a substituição geracional; bem como todos os elementos do natural (bosque, água) que circunscrevem a história a um lugar e um tempo reais mas que, por serem suficientemente indefinidos, garantem a regressão necessária a um 'era uma vez há muito tempo',o qual facilita a projecção e identificação com dilemas difíceis de trazer à consciência.

Os contos tradicionais deixam os seus protagonistas sempre órfãos não por crueldade mas porque o imaginário colectivo reconhece que o processo de individuação é um caminho interno, intrapsíquico, individual, e nesse sentido 'órfão'; e valida esse sentimento através do jogo simbólico de limpar o sarampo às figuras 'protectoras' sem meias medidas logo ali nos primeiros capítulos. Assim se concentra a trama na narrativa individual da criança-herói, e em todas as aventuras que se irão seguir.

Isto porque a temática central de qualquer conto ou mito será sempre desvendar O sentido da vida. Ele fervilha ali nas histórias, em formato de semente pronta a ser recolhida pela capacidade de cada um de sonhar. E o onírico é, acima de tudo, a possibilidade individual de configurar o futuro de acordo com o desejo único e intransmissível de cada um, de ser-no-mundo não menos do que aquilo que já é no seu ideal do eu.

E não é que a nossa Ofélia se vai sair lindamente e ser feliz para sempre e mais não sei o quê?

Os cinéfilos que comentem a realização, a fotografia, e todas aquelas coisas das quais eu só posso dizer 'gostei muito'. E a miúda tem uma interpretação fora de série. Que tem.